Thursday, February 01, 2007

A análise a seguir exemplifica o aprimoramento da participatividade e do poder de ação política propiciado pela Internet como ferramenta de interação na esfera pública em rede em contraposição às características da esfera pública mediada pela mídia de massa comercial.

A história escolhida para tal trata da polêmica em torno do sistema de votação eletrônica produzido pela Diebold, uma das empresas fabricantes de urnas eletrônicas certificadas para as eleições de 2004 nos Estados Unidos. Apesar de ser um debate a respeito de votação eletrônica, não é isto que o torna pertinente à democracia. O debate poderia tratar de qualquer prática corporativa ou de governo que fosse difícil de investigar e analisar, tivesse graves implicações e que fosse amplamente ignorada pela grande mídia. O fato relevante aqui é que a esfera pública em rede se mobilizou e conseguiu, com sucesso, transformar algo que não era pauta de discussão pública séria em uma discussão pública que levou a ações públicas concretas.

Urnas eletrônicas foram utilizadas em escala substancial pela primeira vez nas eleições de novembro de 2002 nos EUA. A cobertura da mídia ressaltava principalmente a novidade do mecanismo com leves referências à possibilidade de eventuais falhas, mas sem nenhum questionamento severo quanto à segurança do sistema. Sem dúvidas, uma análise profunda não seria uma tarefa fácil dada a necessidade de alto grau de conhecimento a respeito de segurança de computadores e o fato de o assunto ser tratado como altamente confidencial. Entretanto, devido a uma série de fatos, a tarefa mostrou-se viável para um grupo de voluntários organizados através da Internet.

Ao final do mês de janeiro de 2003, Bev Harris, uma ativista especializada em urnas eletrônicas descobriu um site da Diebold onde encontravam-se milhares de arquivos com informações confidenciais sobre suas urnas indevidamente acessíveis ao público. Mo início do mês seguinte, ela publicou 2 artigos em um jornal online neo-zelandês. Além disso, organizou em seu site um espaço para pessoas com conhecimentos técnicos discutirem a respeito de suas descobertas. No início de julho, ela publicou uma análise dos resultados das discussões mostrando como o acesso ao material poderia ter sido usado para afetar os resultados das eleições de 2002 no estado da Georgia. Num editorial anexado à publicação os editores do jornal online adicionaram a seguinte nota que ressalta diversas características da esfera pública em rede:

"Nós agora podemos, pela primeira vez, revelar a localização do site onde encontra-se todo o material. Como podemos prever tentativas por parte da Diebold de evitar a distribuição destas informações, nós encorajamos os apoiadores da democracia a fazer diversas cópias destes arquivos e disponibilizá-los em websites e redes de compartilhamento de arquivos: http://users.actrix.co.nz/dolly/. Como muitos destes arquivos estão protegidos por senhas você pode precisar de ajuda para abri-los. Nós descobrimos que a ferramenta disponível em http://www.lostpassword.com/ funciona bem. Por fim, alguns arquivos estão danificados, mas esta outra ferramenta pode ser útil para recuperá-los: http://www.zip-repair.com/. Neste estágio, acreditamos que ainda não chegamos nem remotamente próximo de investigar todos os aspectos destas informações; ou seja, não há razão para crer que as falhas de segurança encontradas até agora sejam as únicas. Portanto, esperamos novas descobertas em breve. Pedimos a assistência da comunidade online de especialistas em computação para nos auxiliar nesta busca e os encorajamos a arquivar suas descobertas em nosso fórum de discussões."

Muitas características desta convocação seriam inviáveis na mídia de massa. Ao das acesso ao material cru completo e usar a estratégia de replicar a informação para que seja impraticável censurá-la leva-se o discurso público a nortear-se pelo "veja com seus próprios olhos" em vez do "confie em nós" típico da mídia de massa.

Além disso, não foi necessário investir enormes quantias de dinheiro para contreatar especialistas. Ao contrário, voluntários que acreditavam na importância do assunto se dispuseram para a tarefa colaborativa. Este curto parágrafo delineia mecanismos radicalmente decentralizados e estratégicos de armazenamento, distribuição, análise e divulgação dos arquivos da Diebold.

Enquanto isso, novos problemas estavam surgindo para a empresa. A revista norte-americana "Wired Magazine" informou em agosto de 2003 ter recebido de um hacker uma cópia de milhares de emails internos da Diebold e enfatizou este fato como outro exemplo do desleixo da Diebold em relação à segurança. A revista não publicou o conteúdo dos emails. Entretanto, a ativista Bev Harris, também recebeu cópias dos emails e os expôs ao escrutínio público em seu site. A empresa respondeu perante a justiça requisitando a retirada do material do site.

Entretanto, os esforços da empresa foram fúteis perante a determinação dos ativistas engajados na distribuição irrestrita do material. Estudantes de diversas universidades dos EUA começaram a replicar cópias dos emails. As universidades receberam cartas requisitando a remoção do material de seus servidores. Os alunos foram obrigados a fazê-lo, mas , no que foi por eles descrito em 21 de outubro de 2003 como "desobediência civil eletrônica" cópias dos emails foram re-distribuídas em redes peer-to-peer de compartilhamento de arquivos (as mesmas redes que são freqüentemente criticadas por seu uso para pirataria de músicas e vídeos). Novamente, a participação de indivíduos de todo o país impossibilitou a censura do material.

Estes emails continham, entre muitos outros relatos problemáticos, evidências de que algumas das urnas utilizadas nas eleições em 2004 haviam sido modificadas após a certificação. Estas informações levaram à decertificação de parte das urnas da Diebold.

NOTA: A Diebold além de fornecer 75 mil urnas para as eleições nos EUA, foi responsável, em parceria com a PROCOMP, pelas urnas eletrônicas utilizadas no Brasil.

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Texto adaptado para o português a partir do original de Yochai Benkler no livro "Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom" ("A riqueza das redes: Como a Produção Social Transforma os Mercados e a Liberdade")

O livro está disponível na íntegra para download em http://www.benkler.org/ sob a licença livre Creative Commons Attribution Noncommercial Sharealike http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/

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